A Sanidade Mental é mais difícil na era da longevidade
Quando se fala na duração da vida da perspectiva científica, vem à tona, por exemplo, o termo “expectativa de vida”, que é um termo técnico na área da estatística social, que mede a média de anos que uma pessoa pode esperar viver em uma determinada população, levando em conta fatores como sexo, ano de nascimento, região, estilo de vida, classe social, escolaridade, qualidade de serviços públicos de saúde, acesso à água limpa, etc. Mas proponho que avaliemos a duração das diferentes fases da vida separadamente, desde a infância, e dos fatores que estabelecem os limites entre cada uma delas, de forma que possamos compreender o que as nossas atividades ao longo da vida, e os nossos papéis sociais têm a ver com a sustentabilidade da nossa existência e, consequentemente, com a nossa saúde mental.
Os períodos ou fases da vida têm caraterísticas próprias,
devido ao que tipicamente acontece nos diferentes momentos da nossa existência
no nível físico, social, intelectual, também no nível ocupacional, e do sentido
da vida, que da perspectiva de muitas pessoas pode se referir ao nível
espiritual. Em geral, se fala em 4 fases: infância, adolescência, idade
adulta e velhice, e de forma geral, as pessoas imaginam que a primeira
possa ser encerrada mais ou menos aos 11 ou 12 anos, que a idade adulta possa
começar aos 18 ou 21, e que a velhice inicie na casa dos 60. Existem
embasamentos legais, médicos e até políticos para definir os limites entre uma
idade e a seguinte, mas proponho que na prática isso vá depender do que esteja
de fato acontecendo, e do que os indivíduos estejam, de fato, conseguindo fazer
nesses diferentes momentos da vida.
Até há menos de um século, para a média da população
mundial geral, ser “adulto/a” dependia de ter 3 capacidades: poder trabalhar
com as mãos e o corpo, poder gerar filhos e demonstrar capacidades para agir diferenciadamente
como homem ou como mulher dentro da família e o contexto social imediato para
ser considerado/a pessoa adulta. É claro que cada contexto cultural
determinou de quais formas específicas que se trabalhava a terra, se cuidava
dos filhos ou se acompanhavam rotinas e rituais cotidianos, mas a idade adulta
estava definida por esses 3 requisitos. As pessoas que tivessem atingido
essa fase, já se deparavam com o entendimento do sentido e o objetivo das suas
existências, pois já sabiam para que e como que iriam viver, até morrer, mais
ou menos ao final dos 30 anos de idade. Isso mesmo!
É isso mesmo: a grande maioria das pessoas no mundo, até
menos de 100 anos atrás, sabia que iria morrer antes de completar 40 anos.
Veja mais detalhes dessa gráfica no
link: https://ourworldindata.org/grapher/life-expectancy
Sempre existiram octogenários/as, mas foi só com o
desenvolvimento de tecnologias públicas (transportes, energia, eletricidade,
água limpa, etc.), e de tratamentos médicos para mais pessoas (vacinas,
antibióticos, anestesia, assepsia, anticoncepcionais, etc.), que a expectativa
de vida se prolongou democraticamente, ao ponto de hoje acharmos surpreendente
pensar que, na média, as pessoas morriam por volta dos 35 anos de idade há só 100
anos. É importante refletir sobre os efeitos que isso trouxe para o
funcionamento psicológico social humano na última era tecnológica, até para intuir
a proposta desse artigo: a saúde mental humana na atualidade é muito menos
atingível do que antes, e prova disso é que nem todo corpo adulto com
inteligência normal é uma mente preparada para a independência, o que traz
sentimentos de extravio, confusão, medo, solidão, incapacidade e frustração,
que impossibilitam o desenvolvimento de uma vida com objetivo, sossego e
bem-estar.
A conquista da idade adulta: a cada vez mais incerta.
Será que aos 18 ou 21 (idade na qual além de férteis já
atingimos a altura definitiva dependendo do sexo) podemos continuar a pensar
que a média dos indivíduos são adultos com o preparo para a vida independente,
tanto no material, quanto no intelectual e o moral, e até com ocupações fixas
ou estáveis, que deem segurança ao conjunto familiar, respondendo aos desafios
normais do presente? Nos dias de hoje, não é mais quem pode trabalhar com o
corpo, se reproduzir e fazer coisas específicas para encaixar em papéis sociais
de gênero, quem tem acesso a viver uma vida adulta.
Convido você a fazer uma pesquisa livre sobre o que a
ciência diz respeito ao tempo de desenvolvimento que o cérebro da nossa espécie
precisa para ficar suficientemente formado para os desafios da idade adulta
atual, e que está ao redor dos 30 anos. Até a discussão sobre qual deve ser
a idade da aposentadoria, ou seja, basicamente qual é o início da última fase
da vida, está bastante conturbada, sem que haja clareza sobre os limites do
ponto de vista político, mas também do ponto de vista dos sistemas de saúde ao
redor do mundo, e perante a lei, em conexão com a divisão que precisa ser feita,
entre indivíduos produtivos ou não, aqueles que precisam de ajudas especiais
por conta da perda de independência, etc. A velhice não é mais aquela fase
da vida na qual não é mais necessário cuidar de crianças, ou fazer o mesmo
trabalho pesado que tudo mundo faz, de forma que os indivíduos possam se
dedicar a fazer só tarefas leves, passar os seus conhecimentos aos entes
próximos, e participar de forma especial na tomada de decisões para o grupo
social.
Vivemos numa era que nos causa muito medo
Há algumas décadas, passamos a não poder mais acompanhar com
o simples uso do bom senso as consequências das mudanças para cada fase da
própria vida. Dá para imaginar com facilidade que até para sermos capazes de
ser adultos que compreendem a cultura, começou a ser necessário mais tempo,
mais estudos, socializar com mais pessoas num contexto social a cada vez mais
amplo, inclusive virtual, e, enfim, mais preparo e espera de modo geral. A
sensação constante de insegurança e frustração parece até a consequência lógica
disso. As sociedades se tornaram muito diversas e maiores, e tiveram que surgir
a cada vez mais leis e regras com intuitos igualmente complexos,
transculturais, transnacionais, e muito além do que a religião dos nossos
ancestrais diretos ensinou a eles e elas ao longo dos milénios sobre o que
fazer e o que não.
Para acompanhar a complexidade da independência adulta no
mundo de hoje, precisamos escolarização e de qualidade, habilidades
tecnológicas e cívicas diversas, precisamos deixar muitas decisões na mão de
diversos profissionais com a permissão e o conhecimento suficiente para tomar
conta de muitas das nossas necessidades, precisamos nos adaptar a grandes
metrópoles e enormes distâncias, saber falar com objetivos muito diversos e
levando a cada vez mais em conta a perspectiva de quem escuta, questionar as
respostas que as nossas culturas deram aos problemas cotidianos de tempos
passados, e até devido a isso tudo, desenvolver um grau de maturidade emocional
que as gerações anteriores nunca precisaram conquistar.
Muitas vezes, por questões de escolaridade, condições
urbanísticas e ocupacionais, indivíduos mais jovens têm mais conhecimentos
sobre a cultura atual do que os mais velhos do mesmo grupo social. Você pode
imaginar o que isso causa na psique ou no psicológico de quem envelhece, mas
também no psicológico de quem descobre que o seu grau de independência
adquirida está sob constante ameaça e a mercê do que ele/ela própria possa
fazer para se adaptar?
Não podemos mais desfrutar como os nossos ancestrais da facilidade
intuitiva de encaixar com a expectativa dos nossos pais e avôs, já que ela não
conecta mais com as necessidades do nosso tempo. Vamos tentar ver por que,
e de que forma isso tem efeitos sobre a saúde mental, já que, como já
indiquei, o sentido e o objetivo da existência para as pessoas, depende do
entendimento de como viver a própria vida e até quando, mais ou menos.
Saúde Mental: o que é?
O termo se refere à capacidade de funcionar no cotidiano, na
relação com outras pessoas, que por sua vez vai depender da possibilidade de adaptação
ao papel que se exerce socialmente, com as tarefas cotidianas que nos dias de
hoje abrangem o trabalho, o cuidado de outras pessoas, ou o estudo. Essa
capacidade está atrelada à possibilidade de sentir prazer, de ver sentido ou
propósito na vida a través dessas tarefas e papeis. Ou seja, a saúde mental
como possibilidade de funcionar e viver, depende da possibilidade de experienciar
uma vida emocional que ajude e não atrapalhe no dia-dia e na realização de uma
identidade que faça sentido no contexto do indivíduo. Neste ponto, é
interessante refletir que não é porque alguém tem um corpo funcional, saudável e
longevo, que essa pessoa irá ser feliz.
Dito de outra forma, a saúde mental é o agrado de se
ocupar em ser o que se entende para a realização da identidade construída ao
longo da existência individual, que permita ter uma participação na cultura e
no grupo social de alguma forma que faça sentido, e que justifique muitos esforços
e momentos de dificuldade, com ajuda do bem-estar físico, mas independentemente
da quantidade de anos que se espere viver. Para os nossos ancestrais, mais claramente
para aqueles que viveram antes de 1870 (veja a gráfica acima), uma vida provavelmente
muito mais curta do que a vida nos dias de hoje, os propósitos na vida e as possibilidades
de desenvolver uma identidade com objetivos e desejos próprios, eram muito mais
restritos e limitados a antigos papeis já conhecidos, que se herdaram ao longo
de centenas de gerações, com pequenas melhoras na qualidade de vida que até
então nunca tinham possibilitado a extensão da vida até o ponto das pessoas
precisarem se questionar sobre a complexidade do dia-dia e o sentido dos papéis
e destinos sociais tradicionais.
Só quando a expectativa de vida se incrementou em mais do
dobro, o sentimento de incapacidade e insegurança para lidar com a dificuldade crescente
na vida em sociedade e com a exigência técnica do dia-dia virou um problema
comum. Só quando a sociedade cresceu exponencialmente, e grandes viagens e
migrações foram possíveis, até o ponto de não conhecer mais aos vizinhos, virou
comum o sentimento de extravio e confusão, ao não ter mais pontos de referência
de ideais identitários restritos e acessíveis que pudessem ser imitados e
aperfeiçoados de formas que claramente fizessem sentido num pequeno contexto social.
Só quando os mais jovens passaram a entender melhor do que os mais velhos as complexidades
da cultura, que muitos sentimentos de solidão moral viraram uma realidade
comum, muito trazida aliás ao consultório dos profissionais Psi.
Só quando os papéis de gênero não ficaram diretamente
atrelados ao papel biológico de cada sexo na reprodução inevitável no encontro
sexual, pois com a tecnologia passou a ser controlável, as ideias de liberdade
individual e desejo próprio vieram a contestar as crenças milenares sobre o
destino dos indivíduos no seu grupo social, e com isso, uma grande variedade de
efeitos psíquicos emocionais e intelectuais passou a mexer com a pequena
existência previsível das mulheres e dos homens nas pequenas sociedades onde os
seres humanos costumavam desenvolver as suas vidas.
Você poderia pensar em quais sentimentos existem em você por
conta da complexidade da vida cultural, social e tecnológica atual, para a qual
a nossa espécie só muito recentemente começou a se preparar, e ainda vai
precisar de milénios? São estas as reflexões que já orientaram o meu
trabalho no consultório Psi, no objetivo da procura de entendimentos e soluções
individuais do caso por caso. Recomendo a você cuidar da sua longevidade, mas
especialmente recomendo a você refletir sobre as consequências das nossas
cronologias humanas nos dias de hoje.
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