Economia à luz da Saúde Mental

 Economia: conceito importante para entender a saúde mental

 

Com a ajuda da origem etimológica da palavra “eco”- “nomia”, vemos que há um nomos ou administração de um oecos, que em latim traz à tona a ideia sobre a forma na qual acontece a disposição das coisas no espaço existente: na vida humana, esse espaço não é só físico; ele também é social; inclusive é individual. É importante entender por sua vez que as “coisas” no espaço humano só têm importância para serem administradas na medida na qual cada “coisa” tenha uma utilidade no contexto; basta pensar, por exemplo, como nem sempre nem em todo lugar do mundo, já foi valorizado o petróleo até o ponto de fazer questão de extraí-lo da terra a todo custo; esse produto natural já se conhecia, antes que fosse interessante usá-lo para movimentar veículos ou fazer fogo sequer. Da mesma maneira, por exemplo, não é porque agora se entende que é importante que as mulheres recebam educação, que todo mundo sempre (ou inclusive agora) concordou: é um esforço coletivo recente que quase todas estão dispostas a fazer, embora em alguns países seja perigoso ou mais difícil do que para os homens. Mas o que isso tem a ver com o nosso título?

É importante primeiro definir os termos relevantes no assunto do título, e no que tange à economia, proponho que possamos entender em termos básicos que ela trata da totalidade das atividades que os seres humanos desenvolvem no momento de produzir, distribuir e consumir os produtos de extração da natureza, os objetos criados com as próprias mãos e intelecto, e os serviços que eles próprios precisam para sobreviver e ter alguma coisa que, no contexto da sua época, possa ser entendida como “bem-estar”. Nesses processos económicos, os seres humanos precisam usar o entorno físico de formas específicas, dependendo de fatores circunstanciais, a través dos seus corpos e mentes, fazendo atividades que se entendam como úteis no contexto, e que consomem recursos ambientais, mas também energia corporal e mental.

Repare na relatividade que estou tentando introduzir ao me referir às épocas históricas, e pense que cada época traz um entendimento específico sobre a realidade, neste caso económica, ou seja sobre o que as pessoas de cada época entendem como “bom” ou “necessário” para viver, e que irá justificar as demandas feitas aos indivíduos na sociedade e os investimentos de recursos naturais, individuais, e de tempo necessário para cada propósito histórico. Se faz sentido no momento histórico, haverá pessoas dispostas ou inclusive obrigadas a agir, por causas coletivas atreladas a ideias de ações que podem ser difíceis, mas sempre necessárias para alguém. Existem todo tipo de atividades produtivas: de construção, confecção, transporte, organização, negociação, ensino, proteção ou cuidado, por exemplo.

Ora, aquilo que os seres humanos fazemos para lidar com o entorno e solucionar os nossos problemas inclui o entendimento que montamos da nossa identidade e as nossas relações com os outros: passamos a achar que “porque” somos escravos, mulheres, brasileiros, herdeiros de uma tradição ou riqueza familiar X, por exemplo, então já temos que fazer atividades, que no fundo têm valor produtivo ou alguma utilidade na sociedade; por vezes uma utilidade para a mesma pessoa que age, mas não sempre. Ou seja, não é porque a cultura valoriza algo como “bom” por ser produtivo de algum “bem-estar” relativo da época, ou como “útil”, que já fica tudo tranquilo para todo mundo diante das decisões que se fazem com relação ao que cada indivíduo, segundo a sua identidade na sociedade, terá que fazer em termos de participação económica.

A cultura diz o que é necessário a ser feito, por quem e como, de forma que seja atingido um objetivo que a cultura valoriza como “bom” sobre como criar valor e como fazer a vida funcionar. Ao longo da história, a cultura estrategicamente colocou diversas funções específicas em indivíduos com caraterísticas etárias, sexuais, raciais, emocionais, de força, etc., mas ela não necessariamente tomou as suas “decisões” se perguntando, por exemplo, se não seria melhor que alguém não tão forte quanto o 10% mais forte da comunidade fizesse um serviço de força física, só porque gosta mais disso do que de outras atividades, ou se não valeria a pena expandir a representatividade racial na sociedade abrindo o acesso a pessoas de etnias minoritárias para fazerem atividades de tipo político ou estratégico. O que isso sugere para você em termos de economia (atividades produtivas e úteis) em conexão com a saúde mental?

 

O equilíbrio físico e emocional que nos permite funcionar

 

Já pensou quanto tempo e energia vital são necessários da parte de cada pessoa para fazermos todas as atividades necessárias no dia-dia para ter o bem-estar que entendemos como ideal nos dias de hoje? Muitos objetos, produtos e serviços têm tudo a ver com a qualidade da nossa existência física, e precisamos pelo menos tirá-los da fonte natural; também transformá-los ou aplica-los: o ar, a água, a terra, os alimentos, substâncias e materiais diversos que possam ter uma aplicação no cotidiano; fazemos tecidos, pequenas máquinas e aparelhos (desde a roda até o smartphone), combustíveis de todo tipo, medicinas; mas também fazemos todos os dias esforços de construção, confecção, transporte, organização, negociação, ensino, proteção, cuidado, etc. No dia-dia também precisamos ser capazes de ter motivação e de saber como interagir com os outros. Precisamos de muitos recursos físicos e mentais para termos a capacidade de agir de forma que faça sentido no contexto, e para querer fazê-lo.

Basicamente, o nosso corpo e a nossa mente funcionam a través de uma lógica de economia, também no sentido da administração da energia, recursos físicos e esforços colocados para solucionar problemas do dia-dia. Proponho falar em “mente” no sentido das emoções e a cognição, que é o nosso entendimento do mundo e do nosso lugar nele. Como eu já disse, o nosso corpo e mente têm a tendência também a “economizar” no sentido de usar os recursos internos segundo a necessidade, sem desperdiçar, e de forma estratégica. Com “recursos internos”, estamos falando em recursos corporais e psicológicos como, por exemplo, glucose, água, capacidade muscular, vitalidade, habilidades manuais diversas, informações e conhecimentos, habilidades cognitivas como a memória ou a linguagem (cada uma delas limitada ao repertório de possibilidades individuais), a motivação e a emoção que, literalmente significam aquela movimentação emocional e imaginária para fazer coisas diversas julgadas como importantes, entre outros “recursos”.

Pense ainda em um detalhe: como criaturas finitas que somos, susceptíveis de adoecer e morrer, não temos tendências naturais a querermos sentir desgaste atoa e desperdiçar o nosso tempo e energia física em ações que não achemos que possam representar algum bem-estar no presente ou no futuro, e pelo menos para os outros. O que essa reflexão te informa? Que nível de sofrimento cotidiano ainda permite agir de forma efetiva no contexto e ainda ter desejo de fazê-lo?

Como eu já disse, ninguém “quer” ou sente prazer, digamos assim, se desgastando atoa. O que eu também já tentei explicar, é que ninguém irá fazer um monte de esforços sem antes achar que eles sejam de alguma forma úteis ou “bons”: especialmente se física ou mentalmente já existe algum grau de cansaço ou fragilidade. A principal motivação humana para agir, para fazer tarefas cotidianas e para resolver problemas, gastando sempre recursos internos, é achar que por alguma razão, seja emocional, seja cultural ou religiosa, seja financeira, seja corporal ou sensorial, é necessário tomar ação.

 

Como avaliamos o bem-estar e o que temos que fazer para obtê-lo?

 

               Exemplo: Mário é um homem jovem (29) que mora com o namorado, Jorge (31), há 2 anos numa metrópole. Ambos são profissionais e cada um é muito bom no que faz: O Jorge trabalha com design de tecnologias e é freelancer; já o Mário tem um trabalho mais “tradicional”, no sentido da estrutura empresarial, 8-17hrs de segunda a sexta, com benefícios de funcionário comum, férias anuais, etc. Eles se amam muito, e sentem alegria de morar num espaço que é só deles, depois de tantos gastos, organização e paciência, depois das dificuldades iniciais de sair da casa dos pais, mas também considerando as dificuldades para ter confortos num sistema onde ter uma renda segura é difícil e numa metrópole, onde a vida cotidiana é mais rápida do que os longos deslocamentos. Eles estão tendo discussões e algumas brigas, a cada vez mais cansativas, sobre assuntos pequenos e grandes que não conseguem solucionar. Ambos começaram a se sentir tristes porque não sabem como melhorar o clima, e já pensaram que talvez seja melhor começar a pensar numa separação. Mário está irritado porque Jorge muda de opinião e desmarca compromissos comuns muito em cima da hora, e porque parece que não liga e não gosta de falar sobre o que quer. O Jorge está irritado porque sente que com o Mário tudo é um problema e que está sendo difícil ter sossego perto dele. Por que você acha que eles estão tendo esses problemas? Pense qual é a melhor explicação da perspectiva econômica psicológica dentre as seguintes opções:

               a. O Mário é mais feminino e, igual as mulheres, gosta de falar muito e quer que o Jorge “ajude” mais dentro de casa; Jorge, mais masculino, gosta de um papo mais concreto e não se importa muito nos detalhes pequenos das emoções e o lar.

               b. O Mário e o Jorge têm trabalhos muito diferentes, que os fazem pensar a vida cotidiana de formas diferentes; por exemplo, o Mário lida bem com horários fixos e situações previsíveis, enquanto que o Jorge precisa funcionar de formas menos previsíveis e nunca tem certeza de quando poderá relaxar.

               c.  O Mário é fiel porque sente mais amor ou porque é o jeito dele mesmo, mas o Jorge está traindo ao namorado e é por isso que evita falar sobre o que faz e o que quer.

 

Por que as opções a e c não têm conexão com a lógica do investimento de energia física e emocional para lidar com o cotidiano e para ter a sensação que está tudo bem?

As pessoas sofrem por conta de acharem, por exemplo, que é “bom” serem muito rápidas e pontuais sempre, dando atenção para os filhos, as amizades ou o/a companheiro/a, só porque já avaliaram num outro contexto que, cumprindo horários sempre e trabalhando além do horário, já conseguiram manter o emprego e as condições financeiras das quais precisaram por muitos meses ou anos. As pessoas passam a sofrer nas suas relações, e também as pessoas ao seu redor, mas não necessariamente elas sabem o que está acontecendo; por sua vez, o sofrimento pode se complicar, e passar de ser emocional, com irritabilidade e tristeza permanentes, por exemplo, a ser físico, com dores de cabeça, mal-estar digestivo, e até agressão intrafamiliar.

O que eu estou propondo aqui, é que o bem-estar mental (e físico) vai depender muito de quanto a nossa forma de resolver os nossos problemas cotidianos, por exemplo segundo a nossa forma de trabalhar ou viver em geral, pode ou não ser usada também para resolver as nossas inquietações emocionais e os nossos problemas relacionais e sociais. Para além de detalhes que possam parecer óbvios, como por exemplo que é bom mesmo não passar fome ou não passar mal, que é bom não receber agressões e que é ótimo ter amizades e pertencer num grupo de pessoas próximas e confiáveis, cada pessoa no seu contexto de vida, e segundo o tipo de relações que estabelece com os outros, pode julgar como “boas” ou “necessárias” coisas muito específicas que, por exemplo na terapia, precisam ser questionadas e entendidas à luz do lugar que ela ocupa no mundo (identidade, funções, responsabilidades) e das suas circunstâncias.

 

O “bem-estar” é relativo e não dá para impor soluções universais

 

Cada pessoa faz “cálculos” muito diferentes sobre o que “precisa” e sobre a melhor forma de obtê-lo. São sempre importantes o contexto e a experiência passada em cada caso para estabelecer o entendimento sobre o que cada um de nós supostamente “precisa” mais e por quê. Em outras palavras, vai depender de quem é essa pessoa e com quem se relaciona no contexto das vivências difíceis, e do que a pessoa aprendeu a fazer para lidar com as crises passadas que a fizeram sentir de formas negativas: com medo, com raiva, com vergonha, com pena de pessoas amadas, com culpa, etc. Infelizmente, não é porque os tempos mudaram que bem dentro dela, a pessoa sabe que não vale a pena lidar com a mesma emoção no presente do mesmo jeito que ela fez no passado. Na “economia” daquilo que se investe e o tipo de “retorno” (efeito) esperado diante das reações desenvolvidas no presente para lidar com as emoções negativas, sempre importa o contexto da vivência inicial e o entendimento sobre ela que cada pessoa tem. ATENÇÃO! Para ler os seguintes exemplos da minha experiência clínica, e entender a proposta desse artigo, é necessário ter maturidade emocional e se esforçar para refletir!

Na linha do que é particular de cada indivíduo, até pelo lugar que ocupa no mundo, “bem-estar” pode significar comer bem e tudo aquilo que é necessário para ter saúde, ou pode significar pular uma refeição com frequência se isso significa que ele vá ter mais tempo para se deslocar de um extremo da cidade até o extremo oposto, com tal de bater ponto na hora certa e não ficar desempregado: porque é funcionário e subordinado de outros que o tratam como recurso substituível. “Bem-estar” também pode significar andar pela rua com segurança, sem que ninguém assedie nem estupre, mas também pode significar aguentar que o marido abuse constantemente de uma das filhas ou que ele bata toda semana na esposa que aguenta, já que o salário e a profissão dele estão alimentando tudo mundo dentro de casa e, de qualquer jeito, a cultura não para de falar na necessidade de todas as crianças terem pai presente.

“Bem-estar”, pode significar ter tempo livre para descansar, descontrair e ter acesso a atividades e objetos de interesse pessoal, mas também pode significar se desdobrar sempre dando atenção aos filhos e ao lar, já que (segundo a crença cultural) o pai deles é homem e não tem jeito de “ajudar” e cuidar ao nível que supostamente uma mãe faz; num caso desse, o bem-estar para a própria mãe pode nem sequer existir, ou pelo menos ficar no nível de esperar que os filhos (especialmente as filhas) a levem no médico na velhice, embora nesse ponto ela não tenha tido condições para viver uma vida prazerosa e com satisfação dos seus desejos e interesses pessoais.   

Sugiro que exista, por um lado, aquilo que faz bem à própria pessoa e sua saúde atual, mas que também exista aquilo que faz bem a outros que impõem uma relação utilitária ou vantajosa com a pessoa que, até por isso, passa a sofrer, e depois vem à terapia se perguntando por que não consegue mais funcionar nem, muito menos, ter paz.

Estou dizendo que com frequência as pessoas passam a achar que “precisam” de coisas que, na verdade, lhes trazem muito sofrimento: trabalhar naquela companhia reputada, naquela profissão não-tão-sonhada, relacionamento duradouro, casamento, filhos, manter laços com os pais ou a família no geral, continuar pertencendo naquela turma de “amizades” ou naquela igreja, reprimir a sexualidade, ter um visual específico, etc.

Muitas pessoas não dedicaram tempo e esforço mental para descobrir por que o que está acontecendo com elas poderia ser diferente e mais sustentável. O tipo de relações estabelecidas com os outros e os ideais culturais sobre a forma que deveria ter a família, o emprego e a vida sentimental e social também fazem parte da realidade económica cotidiana, até porque com a família, o emprego e a vida sentimental e social se resolvem muitos problemas cotidianos, mas vamos combinar uma coisa: não é porque por meio dessas coisas chega o pão na mesa ou porque essas coisas colocam uma pessoa a não morrer sozinha, que todo mundo tem o que precisa para ter saúde mental e física.

 

É possível “calcular” melhor na vida?

 

A forma na qual se entende a economia dos recursos físicos e mentais cotidianos, cria uma “psicologia”, digamos assim; ou seja, identidades, objetivos ideais e perspectivas sobre quais são de fato os nossos problemas. Ao longo da história da humanidade, já existiram escravos, servos, prostitutos/as, subalternos de todo tipo, mão de obra barata para quem se lucrou com ela, hierarquias por cima deles todos, e todo tipo de subdivisão de trabalhos ao interior de uma sociedade específica. Nesse contexto das hierarquias, se estabeleceram quais atividades deveriam ser mais respeitadas e quais menos; pense na forma na qual as atividades feitas por essas pessoas nesses lugares sociais já determinaram as suas identidades sociais: e seu valor. Agora pense nas pequenas atitudes e decisões que cada pessoa pode tomar dentro dessas atividades e lugares.

O que você acha? Quem precisa agir cuidando as próprias falas e não expressando o desconforto ou a inconformidade que sente, e por que o outro não? O dono da empresa ou o estagiário que faz mais de 44 horas semanais e mais um bocado de deslocamento por um salário mínimo fixo pelos próximos 3 meses? Por que você não respondeu mentalmente que fosse o dono da empresa e por quê?

Vamos refletir: O que você acha que não seja escolha ou ação na lógica das escolhas cotidianas baseadas na economia da saúde mental, que por sua vez se baseia na identidade da pessoa, nas necessidades que ela percebe e no tipo de relações que ela valoriza como necessárias, e por que?

               a. Ser a/o irmã/o que sempre fica preocupada/o até o ponto de não poder dormir à noite, a cada vez que o pai bêbado volta da rua tarde a cada sábado, já que ele usualmente bate na mãe quando está nesse estado, e os irmãos mais novos precisam de alguém disponível que os acalme.

               b. Trabalhar muito e cumprindo todas as regras, para responder às responsabilidades do cargo e receber o salário ou royalties, até porque a pessoa tem graduação na área, foi selecionada por isso, e supervisiona uma equipe numa companhia.

               c. Se preocupar por ter um visual “lindo” e muito feminino porque é isso que os homens valorizam nas mulheres, e tentar não ficar “feia” que nem a mãe, que já foi traída pelo pai, mas fica falando que acha que ele irá mudar e que, pelo menos, ele é “bom pai”.

               d. Fazer questão de achar uma namorada do bem, que não goste de excessos e que valorize religiosamente a família e a presença permanente e “estável” do companheiro, de forma que ele possa ter certeza que ela não está namorando com ele só por interesse.

 

Por que você achou que a opção b é diferente? Será porque ela é a única que não remete a sentimentos desconfortáveis e tabus por trás daquilo que as pessoas nas suas circunstâncias se dão conta que “precisam” fazer?

 

A cultura não valoriza a nossa capacidade de questioná-la, mas para isso que existem os profissionais psi (psicanalistas, psicólogos/as, e até psiquiatras...). Existem as psicoterapias que focam na fala e na ressignificação das vivências e ideias sobre o que se sente; existe também o dispositivo clínico psicanalítico. Nem sempre foi possível trazer para alguém as nossas questões sem por isso corrermos o risco de sermos julgados/as ou sofrermos consequências muitas vezes graves. Para isso existem hoje os profissionais na área da mente: alguém que saiba a arte de escutar com ética e respeito pela emergência particular das nossas repressões. Seja bem-vindo/a.

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