Você não precisa "controlar" o que sente.
“Controle emocional”, por que você provavelmente não o precisa?
Seguramente você já escutou esse termo, ou algo assim como
“gerenciar emoções”, e talvez até alguma coisa sobre “inteligência emocional”,
e seguramente também você imagine que a ideia por trás disso tudo deva ser
positiva ou útil para alguém. Mas você já sabe para quem, talvez, seja útil? Como
assim “útil”? Vamos primeiro separar alguns termos chave nesse assunto. Tem por
um lado a pessoa que sente as diversas emoções existentes, como medo, raiva,
tristeza, felicidade, vergonha, culpa, inveja, pena, nojo, amor ou ternura; por
outro lado, tem todas as demais pessoas ao redor de quem sente.
De um ponto de vista da ciência e a saúde, não é possível
escapar do funcionamento natural do corpo, e acontece que as emoções são um
funcionamento, já que cada uma tem a sua própria fisiologia. Já o termo
“fisiologia” significa que algo está cumprindo uma função de uma forma
específica. As emoções são um fenómeno natural; por um lado as positivas, que
geram a tendência de aproximar a pessoa das outras, a aumentar uma conduta
relacionada com o objeto (pessoa ou coisa) que causa a emoção, e por outro lado
as negativas, que geram a tendência oposta, afastando a pessoa do objeto da
emoção. Sim, elas são funções naturais que os animais têm, e que no caso das
pessoas, também existem para ajuda-las a lidar melhor com o ambiente. É dessa
forma que o nosso organismo entende a relação com o ambiente, que às vezes é
ameaçador: a través dos sentidos e das emoções.
Todas as emoções ativam mecanismos anatómicos e fisiológicos
complexos, e todas elas obrigam ao corpo a reagir de alguma forma específica.
Pense que é impossível você convencer ao seu corpo que você não quebrou uma
perna, que está sem dor nem inflamação, e que você pode sim, sair diretamente
para o seu serviço, como se nada tivesse acontecido. No caso das emoções,
embora não haja muita energia corporal disponível ou embora existam múltiplos
assuntos para tomar conta ao mesmo tempo, quem sente uma delas, não pode
ignorá-la e fica muito difícil continuar a vida como se nada tivesse mudado. As
emoções servem para priorizar e tomar ação rapidamente. Cada emoção tem uma
função distinta, e podemos pensar num exemplo: a raiva, que é muito difícil de
ignorar, faz com que a pessoa sinta a necessidade de destruir ao outro, ou pelo
menos se afastar da sua presença; isto evita com que no futuro aquele outro lhe
faça mal, até porque no momento da vivência da emoção da raiva, o indivíduo
interpretou que o outro já lhe fez mal, precisamente. É o oposto com a
felicidade.
O que você poderia imaginar sobre a função que cumpre a
tristeza, por exemplo? Para que alguém quereria ficar jogado/a na cama, sem
fazer quase nada nem socializar, sem quase conseguir se mexer, e ainda sendo
julgado pelas pessoas, só pensando num único assunto o dia tudo? Qual das
seguintes respostas você acha mais plausível?
a. A
tristeza fez o corpo adoecer e precisa que você seja maltratado/a ou
destruído/a por outros mais fortes.
b. A
tristeza “quer” que você não gaste a energia em coisas que não sejam menos
urgentes do que entender o evento recente que a causou.
c. A
tristeza apareceu porque o teu corpo precisa ficar quieto e não atrapalhar
ninguém nem sinalizar a tua presença no ambiente, que é perigoso.
Entenda que se trata de “análises” que a nossa fisiologia
faz para reavaliar como a energia corporal irão ser usada e no que, por ser
considerado importante para a autopreservação. O corpo não é um recipiente
infinito de energias, e ele não as disponibiliza para sempre nem em primeiro
lugar para os nossos caprichos e ideais. Até podemos gastar um monte de energia
naquilo que achamos “bom” por ser divertido ou por parecer moralmente
apropriado, mas se não for isso que de verdade nos protege, o corpo irá
encerrar as reservas energéticas às que possamos ter acesso nesses casos. Por
exemplo, podemos até achar que é muito bom mesmo conseguir trabalhar que nem
loucos, sem limite de horário, entregar muito rápido o que nos é pedido, de
forma que possamos “crescer” numa empresa, ou pelo menos não perder o nosso
emprego. O corpo não avalia a realidade desses desgastes como algo conveniente.
Ele irá encerrar o fluxo de energia disponível para isso a partir da hora que o
nível de estresse e mal-estar físico e emocional não consiga desaparecer com a
rotina básica de descanso: inclusive, fazendo com que descansar seja quase
impossível.
Na verdade, não é possível dissimular
É importante analisar a função auto-protetora de cada emoção
de forma independente, mas também é importante analisar a razão para as emoções
também poderem ser “lidas”. Cada emoção, que ativa fisiologicamente ao corpo de
forma específica (para correr, para ficar ser reação, para não ter ânimos,
etc.), também se usa de partes do corpo, órgãos e músculos específicos; por
isso que existe o fenômeno do sorriso, mas também dos punhos apertados, da
postura desanimada, etc. Para serem vistos por outros. Entenda no exemplo do
medo, por exemplo, que é até interessante que os meus vizinhos saibam que eu
estou apavorada com algo que acabou de acontecer no meu quintal, já que por
morarem do meu lado, aquilo pode acontecer com eles também, e é muito bom eles
saberem a tempo para poderem ter reação oportuna. Eles vão saber pela minha
expressão que, sim, algo aconteceu. Você pode imaginar o que informa de interessante
aos outros que alguém tenha expressão de ternura ou amor? Será que o interesse
que eles vão ter vai ser para eles se prepararem para tomarem ação com muita
força nos braços ou para ficarem a vontade, sorrir e socializar?
As emoções servem para comunicar algo aos outros,
claramente. Pense que para os seres humanos, de antes que existissem os
idiomas, já era possível fazer gestos, fazer barulhos e ficar visivelmente
emocionados. Desde o início dos tempos, as emoções permitiram que se
comunicassem aos outros estados internos muito variados: de antes que os seres
humanos tivessem linguagem falada. Tudo mundo sabe quando alguém está bravo, ou
quando alguém está alegre ou triste. Tudo mundo sabe que há algo de errado com
alguém por conta da sua postura, gestos e atitude. É graças às emoções. É igual
com as crianças muito pequenas, e com espécies animais sem linguagem. Sabemos
que a informação é importante para tomar decisões, e as emoções são só uma
linguagem para decodificar informações importantes, digamos assim. Mas para que
alguém precisa saber o que você sente? Por que será que bem com essa pergunta
tendem a surgir sentimentos de receio, vergonha e desconfiança? O que você
escolheria como resposta neste caso?
a. Você não
é tão bom/boa quanto às outras pessoas, e deixar que elas saibam que você tem
alguma necessidade atrelada a um sentimento é perigoso pois irão tomar vantagem
de você.
b. A
vida não é muito simples e parece que o único que importa é as pessoas darem
conta da dificuldade sozinhas, já que também não dá para esperar que outros
resolvam os problemas direitinho.
c. Você
é melhor do que a maioria das outras pessoas, e deixar que as outras saibam que
você tem alguma necessidade atrelada a um sentimento é perigoso pois irão saber
como você conseguiu.
Mas é indesejável sentir coisas. Como se faz então?
Num contexto cultural como o atual, na maioria de sociedades
grandes, pensar que seja bom deixar que os outros fiquem sabendo sobre o nosso
estado emocional é uma ideia um pouco difícil de aceitar, mas vale a pena
entender um pouco o que são as emoções para poder pensar nessa aparente
contradição. Você irá concordar comigo se eu falar agora para você que a
maioria das pessoas tem a tendência de achar que é muito bom que ninguém fique
sabendo que elas estão aflitas por algo, e que até é bom porque a própria
pessoa consegue agir como se nada estivesse acontecendo e, até por isso,
consegue ir ao trabalho e funcionar “bem”, sem dar problema para ninguém nem
brecha para ninguém pensar que não está sendo “madura”, “profissional” ou
“forte”. Não sei se com essa descrição seja possível identificar que poderiam
estar funcionando sentimentos de desconfiança nos outros, e isso pode ser
importante de analisar.
Tudo mundo está de boa com a ideia de ter outra pessoa na
frente expressando suas emoções, tanto positivas quanto negativas,
gesticulando, falando a respeito do que sente, usando a linguagem corporal
também e, quem sabe, exigindo alguma coisa para se sentir melhor? Existe algo
muito estranho sobre o que precisamos pensar, que fez com que um mecanismo
natural básico de autoproteção virasse um empecilho para a vida cotidiana.
Aparentemente, na forma na qual a cultura passou a funcionar
ao longo dos milénios, é melhor que as emoções não comuniquem tanto aos outros.
Certamente, não vivemos mais num mundo onde a principal preocupação nossa seja
a relação com a natureza e a morte iminente e fácil. Agora não iremos comer,
ter teto e tudo que é necessário só ao acordarmos com o sol, irmos trabalhar
fortemente com as nossas mãos, e voltarmos logo para descansar com o pôr do
sol. Agora precisamos convencer muita gente de merecermos ter acesso aos
contratos, projetos e empregos que, por sua vez, nos tragam salário ou
comissões suficientes para viver e pagar um monte de contas e dívidas, tomando
cuidado do tipo de pacto que a gente faz com os outros. Ao mesmo tempo, não é
porque temos o mesmo preparo do próximo que já teremos acesso ao que precisamos
para viver em paz. É muita intermediação e interação, muito trabalho, muito
estudo, muito planejamento, muita comunicação e sobre tudo muita estratégia. A
cultura nos dias de hoje é muito complexa: os nossos ancestrais jamais teriam
imaginado como tudo ficou.
As estratégias necessárias no contexto social, em sociedades
a cada vez maiores, onde o sobrenome, a profissão, a etnia, e até o sexo a cada
vez informam menos sobre a relevância individual, incluem a necessidade de
convencer aos outros de muitas coisas que precisamos que aconteçam nas nossas
vidas. Por questões mais ou menos óbvias, é muito mais rápido e prático
convencer aos outros de que eu sou confiável do que o meu semelhante, seja
verdade ou não, com histórias bem contadas e salientando aquilo que os outros
preferem ouvir, de forma que eu possa ser contratado/a para um cargo que paga
um bom salário, por exemplo. Nesse contexto, vai ser estratégico que não
transpareça o meu medo a respeito de não estar comunicando exatamente o que
quero que o outro entenda. Eu também vou querer, por exemplo, que os outros não
se deem conta que fiquei feliz porque o outro que eu até acho mais capaz que eu
para o cargo, não tenha sido o contratado.
Ao mesmo tempo, não vou querer parecer cansado/a ou
preocupado/a pelo futuro familiar quando sou pobre, não tenho apoio, mas também
tenho algumas crianças que dependem de mim e precisam me obedecer e me enxergar
como uma pessoa “forte”. O nosso cérebro pode se usar neste caso da ansiedade,
a irritabilidade e a culpa para tentar gerar mal-estar psicológico diante da
aparente inação no descanso e nos momentos de recolhimento pessoal, e nos
motivar a procurar uma solução igualmente “forte” que pareça que possa parar
com a fonte do problema: por exemplo, a falta de pão na mesa para o resto da
vida.
No final, é bom segurar o que estamos sentindo?
Então não expressar o que se sente quando mais se está
sentindo a necessidade de fazê-lo, pode ser vantajoso para alguém, sim, mas só
no contexto da estratégia para obter o que precisamos num ambiente social
altamente mediado pela persuasão dos outros. Isso quer dizer que nem sempre é
possível segurar a expressividade emocional, e certamente não para sempre. Inclusive
poderíamos pensar que, se as nossas estratégias não são boas, pode ser que
fiquemos afetados negativamente, já que agir como se não sentíssemos o que
sentimos é cansativo por ser contrário ao nosso design natural, digamos assim.
Mas veja que, para além da questão das consequências
negativas de segurar as nossas emoções por muito tempo, eu introduzi também a
questão sobre o problema de avaliar corretamente o que seria que precisamos
fazer para convencer aos outros de merecermos algo que precisamos, ou inclusive
a questão de entender corretamente o que seria exatamente o que precisamos: pode
ser que o que precisemos não seja bem segurar que nos sentimos com medo de
sermos derrotados por um concorrente forte a uma vaga, mas que seja acharmos um
cenário mais tranquilo para trabalhar, onde não exista esse nível de
concorrência pela aparência de capacidade. Pode ser também, por exemplo, que
uma mãe solteira não precise parecer sempre muito durona e irritável de forma
que possa conseguir que os filhos e filhas facilitem o dia-dia dentro de casa;
de repente ela precise de qualidade de vida e de recursos que outros deveriam
disponibilizar.
Proponho que o entendimento inteligente sobre o que
realmente precisamos num contexto social altamente complexo seja o caminho para
experienciarmos menos sofrimento emocional. Não é sustentável sempre parecermos
autossuficientes e capazes de tudo sós. Pode ser que o dito “controle
emocional” na verdade seja muito nocivo para quem o pratica, e completamente
desvantajoso. Aliás, esse tipo de “controle”, se é que ele é “vantajoso”, ele
só seria para as pessoas que ficam ao redor da pessoa emocionalmente afetada,
já que ela, por exemplo, em bom português brasileiro “não dá problema”. A
pessoa sutil que segura sempre o que sente não atrapalha ninguém, e desse jeito
ninguém fica obrigado a fazer ajustes nem esforços de nenhum tipo para fazer
alguma diferença na sua vida. Convido você a falar comigo sobre o que sente.
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