Também as mulheres amadurecem tarde
As famílias, as gerações anteriores, incluindo as mais recentes, continuam a ensinar comportamentos adaptativos à vida social, que não necessariamente se correspondem mais com as necessidades da vida cotidiana atual. Quanto mais tecnologias e atualizações culturais se fazem presentes numa sociedade, maiores as mudanças e mais veloz o ritmo da obsolescência de muitos comportamentos comuns: isso inclui os comportamentos tipicamente femininos e tipicamente masculinos. Nesse sentido, pense: O que que as meninas são ensinadas ainda hoje, depois de muitas gerações de história, a fazerem de forma que os comportamentos delas sejam “adequados” ou “bons” para os olhos dos outros? Por acaso você pensou nas palavras “cuidado”, “passividade” ou “obediência”? Por quê?
Na história da humanidade, quanto mais recente a época, mais
variedades de tipos de trabalho surgiram na cultura. Surgiram as profissões e
até as classes sociais. Mas também os roles de gênero: pensa por que alguns
tipos de trabalho dependem do cuidado ou da obediência, por exemplo.
Seguramente você já ouviu falar muitas vezes sobre a figura
do caçador/coletor, que saia da tribo, e da necessidade que houve de alguém
ficar no refúgio coletivo cuidando das crianças, os mais velhos e os doentes ou
feridos. Por questões de parto, se entende que fosse a tendência que os homens
saíssem e as mulheres ficassem. Foi uma estratégia de eficácia para solucionar
problemas típicos da época mais rápido e melhor. Pensa nas habilidades
necessárias para cada rol: com os séculos, qual precisou de mais músculo, qual
de melhores habilidades de linguagem e observação das necessidades dos outros?
Hoje em dia, só os homens precisam sair para procurar recursos e todas as
mulheres têm filhos ou têm interesses de cuidado?
As meninas amadurecem mais cedo?
Pode ser que você tenha exatamente essa ideia, e até que
você possa pensar em explicações para sustentar a sua opinião com alguns
exemplos da vida real. Mas de onde vem esse pensamento originalmente, e por que
poderia ser discutível e ter consequências problemáticas?
Na biologia, se sabe que uma tendência é que os meninos
aumentem a estatura até os 21 anos de idade, enquanto a estatura das meninas
para de aumentar aos 18 anos, mais ou menos. Também se sabe que isso depende de
traços individuais, étnicos, da carga genética geral, e até da alimentação, que
leva aos dois sexos a crescerem por mais ou por menos anos; ou seja, acontece
também o contrário: meninas que crescem por mais tempo, e ficam mais altas do
que a maioria de meninos da mesma idade, e meninos que param de crescer muito
antes do que outros. Mas poderíamos dizer que o crescimento físico é igual à
maturidade psicológica, emocional, moral e intelectual? É uma pergunta muito
importante.
Poderíamos entender “maturidade” como aquele estágio
final no processo de desenvolvimento individual, no qual todas as habilidades,
saberes e formas necessários para a independência e a reprodução já foram
alcançados. Isso é importante de levar em conta para analisar o caso por
caso de cada espécie de seres vivos, já que no caso da espécie humana, sabemos
que o grau de complexidade da vida social e cultural faz com que a nossa
existência precisasse de habilidades e saberes que vão muito além do
desenvolvimento das nossas formas e tamanhos corporais.
A vida dos seres humanos na sociedade é altamente complexa,
e nos dias de hoje é mais complexa que nunca. Temos sociedades muito grandes,
tecnologias muito avançadas, problemas cotidianos que nunca antes existiram,
novas perguntas filosóficas, e uma história muito longa que precisamos sempre
revisar e analisar sem que as caraterísticas do nosso presente nos confundam e
não nos permitam compreender o que já aconteceu. Nos dias de hoje, não é porque
já podemos trabalhar com as mãos, usar o corpo, ler e escrever, e procriar
filhos que já estamos prestes a sermos pessoas adultas independentes e capazes
de levar uma nova geração adiante. Precisamos de habilidades muito elevadas de
abstração e historização, de linguagem e negociação, de trabalho intelectual,
de entendimento de normas e conhecimento sobre opções, até para entendermos o
nosso lugar individual na vida social e sabermos como agir: sabemos que o papel
individual que as pessoas aprendem que têm na sociedade depende, por exemplo,
do género e suas condutas sociais.
O papel das meninas na sociedade obriga a elas a agirem de
formas mais “maduras”
Você já se perguntou por quê? Leve em conta que os
comportamentos de indivíduos específicos, por exemplo das mulheres, só existem
porque são úteis ou porque já foram. Eles ajudam aos indivíduos se adaptarem às
necessidades do ambiente: pelo menos, idealmente. Os comportamentos que se
ensinam e que se aprendem têm ou tiveram uma razão de ser. Vou propor aqui que “maturidade”
possa ser entendido como uma atitude e uma aptidão útil no ambiente social e
cultural: algo que o entorno valoriza como algo “bom” e necessário, que só os
indivíduos “maduros” conseguem fazer. Para as sociedades e as culturas de
todas as épocas, já foi muito útil que alguém tomasse conta dos cuidados das
pessoas que precisam: bebês, crianças, jovens, pessoas idosas ou com
necessidades especiais, e pessoas doentes.
Quem tipicamente é ensinado a cuidar dos outros, fazendo
atividades como limpeza, troca de fraldas, dar banho, preparar comida, dar
remédios, ajudar com deveres, fazer de babá, ensinar a falar, levar no médico,
comprar coisas pensando no outro, ficar em casa para fazer companhia, etc.,
inclusive relevando as próprias necessidades e confortos com tal que, quem
precisar, receba ajuda e apoio, segundo o caso? Os meninos ou as meninas? Quais
atitudes e aptidões são ensinadas às meninas para conseguirem fazer essas coisas?
Talvez você pensou em habilidades de cuidado, detalhe, obediência, adiamento do
prazer, responsabilidade financeira, habilidades de ensino “com amor” e de
linguagem. Obviamente, podemos entender que os meninos também podem aprender isso
tudo, mas também só podemos explicar que eles não têm maioritariamente esse
perfil, precisamente porque culturalmente não se faz tanta questão para que
aprendam a fazê-lo.
Até hoje, os meninos são mais ensinados a usarem a força
corporal, a irem atrás dos próprios desejos longe da família, a não se
preocuparem tanto pelas outras pessoas, inclusive, concorrendo com outros
quando for necessário. Eles não estão tão preocupados pelo cuidado físico e
afetivo de outras pessoas que precisam de ajuda e atenção, nem por
desenvolverem aptidões de escuta, paciência, e postergação dos próprios desejos
desde a juventude: eles não precisam aprender tão cedo a tomarem cuidados que
as meninas sim aprendem pelo bem-estar coletivo, nem com o fim de serem aceites
pelos outros como “boas meninas”. Para serem capazes de oferecer esse bem-estar
aos outros, as meninas que ainda são ensinadas, principalmente as filhas de
famílias de baixa renda e renda média, precisam aprender a segurar mais os
próprios desejos, a curiosidade, a atividade física, a expressividade da sua
inconformidade, e também, muito importante, elas precisam aprender a
compreender as necessidades das pessoas próximas.
Ser capaz de cuidar de outas pessoas é útil para a sociedade
Fazer bem às outras pessoas é muito valorizado socialmente;
especialmente se se trata de um serviço gratuito ou muito barato. Você já ouviu falar a frase “a pobreza tem
cara de mulher”? Não será que o papel de cuidado é tão necessário que dizemos
que quem faz é alguém com maior maturidade?
Claramente, os meninos tiveram mais oportunidade para
desenvolverem a força física durante as longas épocas de trabalho braçal e os
cuidados exclusivamente feitos por membros da própria tribo ou família. A
biologia acabou contribuindo, mas o que aconteceria se virasse comum que as
meninas fizessem o mesmo exercício e o mesmo uso muscular do corpo? A biologia iria
ceder. De fato, isso já foi realidade. Não é à toa que em questão de alguns
séculos os seres humanos conseguissem modificar tanto formas, tamanhos, cores e
até temperamentos de centenas de raças de animais domésticos e de trabalho.
Mas, é porque as meninas precisaram aprender desde mais cedo a escutar mais e
dar espaço às necessidades dos outros que elas ficam maduras mais rápido? Lembra
a definição de “maturidade”? Seria como dizer que os homens são mais maduros
porque têm maior tamanho: mas não pensamos isso porque sabemos que a cultura
não valoriza a força física antes do que outras coisas nos dias de hoje.
O que estas análises significam? O que que elas significam
para você e de que forma você acha que isso está conectado com o teu sofrimento
cotidiano, seja como homem, seja como mulher?
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Nota adicional: Neotenia é um termo na psicobiologia que significa algo
assim como juventude alongada ou prolongada. Algumas espécies têm uma juventude
mais longa do que outras, ou seja, demoram mais tempo para atingirem um nível
de maturidade e independência. Obviamente, quanto mais complexa for a vida,
mais tempo será necessário para aprender e se adaptar às demandas do ambiente.
A vida humana é muito mais complexa do que a de outras espécies porque somos seres sociais com linguagem e pensamento abstrato. A maioria de
animais já são idosos ou já morreram quando um ser humano só está iniciando a
puberdade. Só atingimos a idade reprodutiva aos 14, aproximadamente e, para
além disso, a ciência entende a adolescência humana como uma fase a cada vez
mais longa, que irá se prolongar mais na medida que a nossa cultura fique mais
complexa e o caminho para a independência fique mais longo.
A aprendizagem é um processo muito complexo, por sua vez,
que depende de muitos fatores, quanto do tipo de habilidade ou conceito a ser
aprendido. Ela depende da instrução, da prática, da modelagem, do jogo, do
erro, da correção, e da sofisticação ao longo do tempo. Para aprenderem a serem adultas, que podem responder às demandas do ambiente social e cultural humano, as mulheres também precisam de muito tempo. Poderiamos pensar, de vários pontos de vista, por que muitas mulheres que só aprenderam a cuidar, não estão suficientemente preparadas para serem adultas, e por que muitos homens que não aprederam a fazê-lo, não estão. A discussão é interessante.
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