Evolução: não se trata do macaco, se trata da sustentabilidade da vida cotidiana
Evolução da nossa espécie e estilo de vida sustentável
Vamos concordar com que a saúde mental tem a ver com uma
vida sustentável, ou seja, uma vida possível de ser vivida também no futuro,
sem morrer muito cedo, e sem sofrer sempre, de forma que possamos resolver os
nossos problemas e ainda ter tempo de sentir prazer. A nossa espécie, de gênero
homo, com tantas coisas em comum com outros grandes primatas, tem um
diferencial que a tornou há aproximadamente 300 mil anos o homo sapiens,
ou “hominídeo que pensa”, literalmente. Para além desse ponto evolutivo, o homo
sapiens sapiens, que é o nosso estágio atual de espécie, seria literalmente
o “hominídeo que pensa que pensa”, ou que “sabe que sabe”. É muito interessante
pontuar que se trata de um potencial na nossa espécie, que pode nos ajudar a entender
aquilo que nos faz diferentes de espécies similares que também formam sociedades,
cultura, e também resolvem problemas cotidianos difíceis.
O que significa que somos a única espécie que sabe que sabe
coisas, ou que passa tempo pensando no que ela pensa (pensou e irá pensar)? O
que isso significa é que a gente tem a capacidade do raciocínio abstrato, que a
gente pode pensar em termos de hipótese (não só de fatos visíveis), que a gente
pode planejar pro futuro com o que se sabe que pode chegar a acontecer (graças
à historização da experiência passada), e que a gente pode ser empática de uma
forma muito particular ao poder imaginar a complexidade das vivências alheias:
claro, se cada indivíduo faz questão de se esforçar para isso, lembrando que
estamos falando de um potencial. Nas ciências cognitivas essa habilidade é
chamada, por exemplo, de “teoria da mente” ou “metacognição”, caso você queira
aprofundar nos conceitos do ponto de vista teórico. O que a capacidade que a
nossa espécie tem de pensar com relação ao que não está acontecendo na nossa
frente agora, tem a ver com a saúde mental?
O pensamento abstrato tem importância como habilidade
adquirida ou efetivamente usada, para que os indivíduos possam ter saúde
mental, ao se adaptarem de forma efetiva a um meio que obriga a pensar em
abstrato. Aliás, “saúde mental” tem a ver com a possibilidade de colocar à
disposição as habilidades esperadas de serem adquiridas em cada momento
cronológico da vida, para solucionar problemas, reagir de forma adaptativa, e
lidar com as dificuldades. São as minhas palavras, após a minha experiência clínica
e acadêmica. Você ainda pode pesquisar sobre o conceito, é claro. Na minha
definição, eu estou sugerindo várias coisas: primeiramente, que às vezes algo
impede que se coloquem à disposição as habilidades adquiridas para lidar com a
vida, que às vezes não se adquiriram as habilidades esperáveis para uma idade X
(o que ainda depende do contexto histórico-cultural), e que o nível de
dificuldade da vida vai depender muito de circunstâncias externas aos
indivíduos. Para além das sensações de bem-estar e prazer, vamos combinar que
saúde mental tem a ver com a possibilidade fatual de se adaptar às condições da
vida, por ter capacidades, saúde e recursos.
Se adaptar: ao quê?
O termo “adaptação” pode ter muitas acepções. Sugiro neste
caso que não se trate de “aceitar” / “aguentar” coisas que são ruins de
modo geral, ou “fazer igual tudo mundo faz”. Igual pontuei antes, “se adaptar”
tem a ver com as possibilidades de interagir de forma satisfatória com o
contexto e as circunstâncias. No século 21, para o padrão ideal de pessoa
comum, é necessário saber usar a internet, ter habilidades suficientes num
computador ou num smartphone, compreender inglês (ou alguma língua imperante),
saber se deslocar numa metrópole, mas também é necessário conseguir descansar
com sons e luzes que perduram ao longo da noite, socializar cada vez menos, ter
o necessário para viver em espaços cada vez menores, suportar ter acesso
limitado à natureza, entre outras. Até há só 500 anos, por razões obvias, para
a grande maioria da população no território das Américas, por exemplo, nenhuma
das habilidades necessárias para se adaptar ao estilo de vida atual era sequer
cogitada como necessária.
O desenvolvimento das grandes tecnologias para as grandes
sociedades demorou para surgir. Na maior parte do território mundial, o dia a
dia há 150 anos consistia em acordar com a saída do sol, trabalhar a terra,
fazer as próprias roupas e tetos com as mãos, andar muito para procurar água
limpa direto da fonte natural, cozinhar o estritamente necessário, ter a máxima
quantidade possível de filhos (exceto nas sociedades nómades que ainda
existissem nesse momento), cuidar das crianças e adolescentes até eles também
conseguirem trabalhar com as mãos e ter filhos próprios, ir dormir com o pôr do
sol, adoecer na casa dos 30 e morrer antes dos 40. De modo geral, é fácil
imaginar as habilidades que já foram necessárias nesse estágio da nossa
história da espécie.
O que foi necessário para viver “bem” no passado distante e
não tão distante?
No início do texto mencionei que a nossa espécie existe na
terra há 300 mil anos, mais ou menos. Você consegue comparar esse número com
150 anos, por exemplo? Você consegue dimensionar quanto as nossas culturas e
sociedades se complexaram em menos de 2 séculos? Será que o nosso corpo e a
nossa mente têm tudo o que precisam para viverem “bem” diante de tanta novidade,
que surgiu tão rapidamente?
Você já deve ter ouvido falar sobre as consequências
negativas da luz artificial no horário noturno, ou das que trazem o isolamento
social, a falta de exercício físico, a fast-food, ou o estresse e as doenças
físicas que trazem a rapidez, o consumo sem limites e a poluição. Iremos
precisar de muito tempo ainda para acompanhar física e mentalmente as novas
realidades existentes de forma que não adoeçamos. Por enquanto, adoecemos com o
nosso dia-dia, porque os nossos corpos não estão adaptados para o que
precisamos experienciar todos os dias. Não é porque sabemos que existem tantas
coisas e condições que trazem riscos à saúde, que já iremos conseguir
contorna-las. Elas estão perto, prestes a nos afetar.
Sabemos bem conviver com um número limitado de pessoas,
lidamos bem com a complexidade do dia a dia quando estamos inseridos/as numa
pequena tribo, numa família, numa turma pequena, num bairro relativamente
pequeno onde a maioria das pessoas se conhece, desde que cada pessoa entenda
seu lugar e o encare como algo com o qual terá que lidar sendo a única opção
existente, numa vida curta onde os papéis sociais se entendam muito bem por
serem menos variados e mais conectados com a praticidade da vida. Só imagina a vida há vários séculos ou
milénios. Sendo absolutamente necessário, todos/as saberíamos andar, correr,
trabalhar com as mãos, usar o corpo nas formas necessárias: claro, enquanto
tivéssemos um corpo completo e não sofrêssemos de infecções graves. Para além
disso, digamos que existiam poucas opções de coisas das quais pudéssemos
“gostar” ou “não gostar”; a cultura só foi diversificando as possibilidades ao
longo do tempo.
Curiosamente, com os nossos corpos e cérebros do século 21,
estamos muito bem adaptados/as para sobrevivermos com níveis suficientes de
saúde até perto dos 40 anos de idade, em condições de trabalho corporal,
pequena comunidade, divisão do trabalho do cuidado para as mulheres e do
trabalho pesado e a defesa para os homens, para acordarmos com o sol e irmos
dormir com a noite, para armazenar nos nossos corpos a maior quantidade de
gordura possível para evitar a morte por conta das limitações na
disponibilidade de alimentos, e para não perdermos tempo com imaginações sobre
o que não está acontecendo na nossa frente. Mas o fato de termos superado o
risco de morte principalmente por conta do parto, do trabalho pesado, das
infecções, e da fome, teve um preço. O
fato de termos desenvolvido cirurgias, antibióticos, anestesia, direitos
humanos, máquinas e tecnologias diversas, parece que nos colocou a descansar a
mente muito pouco e esse é o nosso desafio atual da espécie.
Desafio adaptativo atual: usarmos a mente mais do que o
corpo.
O pensamento abstrato é um trabalho mental difícil, que se
fez necessário com a passagem do tempo, a complexação da vida cultural humana,
a criação de tecnologias para o controle da natureza, o crescimento exponencial
das sociedades, a escrita, a interculturalidade das grandes migrações, a
aplicabilidade prática de predizer coisas, e a necessidade de levantar
hipótesis sobre as razões de problemas a cada vez mais complexos e abstratos na
cultura. Quem não consegue fazer funcionar a cabeça nessas formas nos dias de
hoje, e tem a tendência de achar que o que não vê não existe, tem desvantagens
evolutivas grandes no século 21.
Para além do uso direto do pensamento, no sentido de nomear
as coisas, lembrar delas, comunicar memórias ou construir ferramentas e
soluções práticas a problemas atuais concretos, é necessário pensar em
abstrato, predizer, hipotetizar, entrar nos detalhes da mente dos outros, não
ter medo do diferente e tentar aprender dele. Vivemos numa época na qual é
importante enxergar para além do pequeno contexto social e cotidiano pessoal, a
não ser que a nossa vida seja muito simples e não inclua muita diversidade
social ou temática, nem muita variedade de problemas para resolver. Mas quem,
de fato, pode se dar o luxo de viver isolado da internet, de outras línguas,
outras opiniões religiosas ou políticas, de gente que não seja a família e
vizinhança, e ainda ter tudo o que precisa para viver com bem-estar?
Para ter algum nível de bem-estar material e emocional, nos
dias de hoje, é necessário pertencer à nova civilização, que é um contexto no
qual os problemas não são facilmente nomeados com poucas palavras nem de poucos
pontos de vista. Você já deve ter notado quanto eu faço listas neste texto,
tentando descrever conceitos. É assim com a realidade atual na cultura: é
necessário fazer esforços de descrição, “listas” longas, considerar
alternativas, imaginar como alguém diferente iria também fazer sua descrição
dos problemas, e ainda ter espaço para duvidar e energia para voltar ao início
e rever o que já foi feito. É muita exigência intelectual, sendo que os nossos
cérebros evoluíram apenas para fazer esforços mínimos e trilhar caminhos
modelados por outros de forma tradicional e intuitiva. É muito fácil se esgotar
e adoecer nestas condições, e os níveis de confusão podem ser muito altos.
A psicoterapia e a psicanálise podem ajudar
Para além de inserir elementos de simplicidade e de lógica evolutiva
da nossa espécie nas nossas vidas, como fazer exercício já que hoje não
precisamos trabalhar com o corpo para procurar alimento mas os nossos músculos
ainda existem para serem usados, como fazer questão de encontrar gente e manter
laços com algumas poucas pessoas significativas nas nossas vidas já que não
evoluímos para ficarmos sós e não falarmos com ninguém, comer coisas com baixo
teor de gorduras e açúcares já que os nossos corpos só irão armazenar o máximo
possível para depois em formato de gordura que pode nos matar no excesso,
termos contato com a natureza e a luz do sol e evitarmos a luz branca à noite
já que os nossos corpos têm ciclos circadianos que só se ativam com isso, ou
tentarmos funcionar bem num papel social específico (mãe, pai provedor,
patriarca familiar, irmã mais velha que cuida dos pequenos, pessoa muito
disposta que aceita pouco em troca pelos grandes esforços que faz para outros,
etc.) já que assim era a vida dos nossos ancestrais, também é necessário
pararmos para identificar como a vida nos faz sentir e por quê.
De repente nos pegamos com tristeza, como com medo, com raiva,
com cansaço e nojo, mas também com vergonha e culpa de sentir essas coisas. A
análise do detalhe, como eu já disse, dos fatores, do que eu iria achar e
sentir se tivesse as condições do outro/a, e o esforço de nomeação da vida
interna, que é abstrata e que não é obvia para os demais, é importante para
superar estados emocionais que podem ser incapacitantes e muito dolorosos. A
origem das emoções pode parecer que não seja tão importante para resolver os
problemas concretos da vida cotidiana, mas como eu já disse, na nossa época em
especial, não dá para só funcionar a partir do concreto, do visível e do óbvio.
Não podemos nos permitir imaginar que dá para relevar o que sentimos e
explica-lo de forma simplista e desconectada do nosso mundo interno. Na nossa
época, o concelho de alguém que não tenha ouvido os detalhes da nossa
experiência não irá resolver muita coisa. Ouvir esses detalhes é o papel de um
bom psicoterapeuta e psicanalista: profissões que só surgiram ao longo dos
últimos 150 anos, quando a civilização parou definitivamente de funcionar no
concreto, se orientar só por tradições e se desenvolver em sociedades fechadas
e previsíveis.
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